á lá vão uns meses desde que estive em Luang Prabang, em Laos, mas as recordações continuam vivas. São boas e mais que muitas. O país é pobre, as pessoas humildes, simpáticas e acolhedoras. A pobreza é visível. A solidariedade e a partilha também. A Cerimónia da Ronda das Almas é uma prática budista, realizada desde o século XIV, que consiste na doação de alimentos por parte da população local aos monges e noviços dos mosteiros da cidade.
Vale a pena acordar cedo para assistir, às 5h30, a este “ritual religioso” tão bonito e cheio de simbolismo. Todos os dias, ao nascer do sol, a população junta-se nas principais ruas da cidade para fazer as suas oferendas aos monges. Os alimentos doados são parte da única refeição diária que consomem. Contudo, estes ainda as partilham com quem mais precisa. Arroz, frutas e doces são as doações mais comuns.
Pelo que percebi, para os budistas a cerimónia da ronda das almas é muito mais que uma simples doação de comida ou ato de caridade. De acordo com a sua crença budista, fazer esta oferenda é uma forma de acumular méritos. Para os monges é uma maneira de exercitar a humildade.
Ajoelhados em tapetes ou sentados em pequenos bancos à beira da estrada, homens, mulheres e crianças esperavam a passagem dos monges, que iluminados pelas suas vestes laranja começaram a aparecer silenciosamente. A cerimónia é imponente. Senti respeito, admiração.
São rápidos, passam em procissão, recebem as oferendas, partilham-nas com as várias crianças pobres que se alinham à sua frente, esperando que as redistribuam, e seguem. Muitos deles são também ainda crianças! Pequenos monges que os pais enviam para os templos, para que tenham uma educação melhor e para que a família acumule méritos.
Assistir à ronda das almas foi ter tido o privilégio de ver com os meus próprios olhos o forte senso de comunidade e generosidade desta população. Sentir-me conectada a uma força e energia maiores!
Foi com muita simpatia, um sorriso grande e brilhante e uma serenidade contagiante que fui recebida pelo bailarino Kwenda Lima, no Art Kaizen, em Lisboa, o espaço que criou, há cerca de um ano, e que define como “um templo de arte para o equilíbrio interno, através de engenharia interna Kaizen”.
Depois de me dar a conhecer este seu tão acolhedor espaço – com zonas próprias para meditar, socializar, dançar e todo ele decorado com símbolos das várias religiões e culturas, de forma a levar as pessoas a conhecer-se e a respeitar-se nas suas diferenças, crenças e filosofias -, Kwenda Lima falou-me do Kaizen Dance, que criou em 2003, do Art Kaizen, de si e da sua forma de estar na vida.
Kwenda nasceu há 40 anos, em Cabo Verde, e, desde que se recorda, sempre foi muito ligado à dança, à arte e à terra. Mais tarde, veio para Lisboa, onde se formou em Engenharia Aeroespacial, no Instituto Superior Técnico, tendo ido depois para Londres, onde fez o seu doutoramento. Apesar de ter sido esta a área que escolheu para trabalhar, o gosto pela arte, pela dança, pela meditação e pelo (seu e dos outros) bem-estar interior falaram mais alto, acabando Kwenda por dedicar-se à, como lhe chama, “engenharia interior”, criando e desenvolvendo o Kaizen Dance.
“O Kaizen é uma filosofia, uma maneira de estar na vida. Por vezes, chamo-lhe de tecnologia, por ser algo de que gosto muito e que desenvolvemos para nosso comodismo, para que funcione”, afirma. E acrescenta: “O Kaizen Dance vai precisamente no sentido de criar esse comodismo, mas de forma a irmos buscá-lo internamente, não apenas no exterior. É uma forma de viver a vida, cultivando-nos com responsabilidade.”
Kaizen é uma palavra japonesa, muito utilizada pelas empresas, que significa “algo que está em constante evolução”. A Dança Kaizen, uma espécie de meditação ativa, com inspiração em vários estilos de dança, de ritmos, de culturas e de religiões.
Aceitar a vida de forma simples
Estávamos sentados no chão, numa bege e felpuda carpete, num espaço acolhedor e com muitos livros, uma cadeira suspensa de teto e pequenos e confortáveis sofás, enquanto Kwenda me falava do Kaizen Dance. Ouvindo atentamente tudo o que me disse, tive de lhe perguntar como surgiu a ideia de criar este estilo de dança/meditação e em que é que se inspirou.
“Não foi algo pensado! Surgiu de uma sequência de informações e situações. Foi tudo muito natural, depois de lhe ter dado um nome, de o criar, cheguei à conclusão que já estava a fazê-lo antes!”
Contudo, e segundo conta, o que o levou a desenvolver o Kaizen Dance foi o facto de perceber que muitas das pessoas que iam dançar, procuravam algo que não era bem a dança. “Há qualquer coisa por trás dessa busca, o movimento acaba por esconder e disfarçar um pouco isso. Porém, entendi que as pessoas procuravam algo que lhes faltava internamente. Mais profundo, delicado e inconsciente. Foi isso que me levou a desenvolver este trabalho através da dança e por gostar de dançar”, afirma.
E desenvolve: “Com o Kaizen procuro levar as pessoas a descobrir e a valorizar as suas próprias ferramentas, a terem essa consciência e a fazer com que aceitem a vida de uma forma simples.”
Os objetivos de Kwenda Lima, em cada aula de Kaizen Dance, dependem do grupo com que está a trabalhar: “Cada corpo é um corpo e tem as suas memórias. Até chegarmos a essa informação, até preparamos o corpo – como a terra para receber a semente – é preciso passar por vários processos.”
No final de cada aula, com diversos ritmos, movimentos e exercícios. Depois de cansarem o corpo e a mente, as pessoas “serenam” e Kwenda passa a sua mensagem, que pode ser sobre a coragem, o medo, o medo de dar e de receber, o egocentrismo, o dinheiro, entre outros.
“Notas diferença nas pessoas passado algum tempo?”, pergunto. “Noto muita, mas vêm também falar-me emocionalmente e dizem-me. Não é um trabalho em que se veja uma diferença palpável, mas sim que se sente e em que há continuidade”, responde.
E diz: “É como se estivéssemos a trabalhar a terra. Depois de lhe deitarmos água, deixa de estar seca e dura, passa a estar macia e, ai, podemos pôr a semente e ela vai brotar. Leva algum tempo até chegarmos a esse ponto.”
Art Kaizen: o sonho que Kwenda tornou realidade
Como já referi, Kwenda Lima criou o Art Kaizen, que se situa na zona de Beato, em Lisboa, há um ano. Contudo, este é um sonho antigo, com mais de 10 anos. “É o tentar materializar a forma como vejo a dança e a vida.”
Aqui são dadas aulas regulares de Kaizen Dance, Kizomba, Afro-Contemporâneo, Yoga, Capoeira e Danças Africanas. Além disso, têm também cursos de Afro-cubano, Mudjeris di Terra – um encontro quinzenal de mulheres -, entre outros.
“O projeto Art Kaizen está a correr muito bem. Está a crescer devagar, mas está a seguir um bom caminho, aquele em que as suas raízes ficam fortes”, afirma Kwenda Lima. E continua: “Nunca gostei de avançar muito rápido. Adoro o Bambu precisamente por isso. Cresce de forma muito lenta, mas forte. Depois há um crescimento muito rápido, ele está forte e resiste a qualquer coisa.”
Kwenda aplica isto em tudo o que faz e o Art Kaizen é um desses seus ramos. “Está a crescer, mas com consciência. Não quero que seja uma escola de dança, mas um espaço de cultura, de união, de ligação, onde as pessoas se conhecem e se respeitam.”
Kwenda Lima e a sua filosofia de vida
Histórias – É gratificante perceber que fazes a diferença na vida das pessoas? Sentes que estás a “cumprir a tua missão/propósito de vida”? Kwenda – Nunca penso em “cumprir uma missão”. Nunca comecei por pensar num propósito de vida, acho que, em primeiro lugar, devemos deixar “a flor nascer”. Cuidar das suas raízes e fazer com que a planta seja saudável. De certeza, que a sua flor vai aparecer.
Nunca pensei na flor antes da planta. Vou vivendo as flores. Se me sentir satisfeito e se isso significa que alcancei o meu propósito de vida… então, sim! Não penso nisso, mas sim no meu bem-estar. No facto de que tudo aquilo que eu esteja a fazer, contribua para o exterior e que seja um trabalho em paralelo para o meu próprio enraizamento e consciência.
É esse equilíbrio que me faz sentir que a vida é simples, boa de se viver.
Histórias – Colocas em prática todos os conselhos que dás? Kwenda – Não posso, nem quero, falar de uma teoria sem a experienciar. Para mim, o importante é eu viver, saber quem é esta máquina, para depois poder partilhar. Dar às pessoas, não a possibilidade de resolverem a sua vida, mas de tentarem descomplicá-la. Para mim não faz sentido falar de algo que não sinto ou não senti.
Histórias – Como é que um engenheiro aeroespacial veio aqui parar? Kwenda – Sempre tive estes dois mundos em paralelo – a dança e a engenharia. Sempre gostei muito de tecnologias e adoro aviões. É fascinante saber que o homem consegue construir uma máquina daquelas, que faz a ligação de uma ponta à outra do mundo, intercâmbios culturais.
Existem muitos engenheiros, é muito fácil viver socialmente de engenharia, mas faltava-me alguma coisa. A ligação com a arte. Gosto de relacionar as coisas e para mim faz sentido ligar a religião, à arte e à ciência. São três pilares muito importantes na sociedade.
Estando na dança consegui encontrar essa ligação. Além disso, enche-me o coração e, ainda, viajo e estou com muitas pessoas. Preenche-me muito mais, por isso não foi difícil seguir por este caminho.
Histórias – Nem sentes saudades? Kwenda – Não! Às vezes sinto saudade de estudar, dos computadores… mas não dura muito tempo! A engenharia passa por criar um conforto externo, fazendo uma casa, um carro, um avião, um computador… Permitir-nos ter uma vida mais fácil, utilizando o Kaizen, para mim é trazer a engenharia para a dança! Se eu consigo criar conforto externo, porque não hei-de criar também interno?
Desta forma, sou engenheiro das minhas próprias emoções, da minha forma de estar na vida, de aceitar, de fazer com que determinada reação/situação não tenha um impacto tão forte em mim. De perceber porque é que eu sou assim, porque é que certas coisas me atingem, porque é que eu permito. Tudo isto é uma tecnologia, uma programação e eu adoro. A nossa máquina é das mais complexas do mundo e entende-la é um desafio interessante.